quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Capítulo 1

A jovem olhava-a nos olhos pelo espelho e sorria. A maquiagem borrada, os olhos ainda marejados. Surpreendera-a com aquela aparência, mas principalmente porque Lara estava ainda apreensiva com tudo. A submissa ajeitava a coleira ao pescoço, a plaquinha de metal reluzindo à baixa luz daquele banheiro, enquanto ela tocava-a com um orgulho quase tolo, sorrindo. Vendo-a ali, não fosse a maquiagem manchando-lhe o rosto seria impossível adivinhar o que acabara de acontecer à cruz. Trazia uma pequena bolsa na mão direita e fitava aquele olhar atônito no espelho como se esperando por algo.

- Ah! Desculpe... – Lara se dava conta que estava ocupando a única pia e dava um passo para o lado, abrindo caminho.

- Nada, que isso... ainda preciso recuperar o fôlego. – A escrava sorria de um jeito matreiro deixando a bolsa sobre a pia, indo lavar o rosto e tirar toda a maquiagem, antes de começar a pegar tudo o que precisava para recompô-la sobre a face. Trazia ainda pedaços de cera derretida colados à pele das costas da mão e dos braços, mas apenas passava a mão sobre eles junto com a água vendo que boa parte caía e ficava na pia. Parecia notar o olhar da outra sobre si e ria baixinho. – Nunca a vi pelas festas e sua cara já entrega tudo... você não conhece muito daqui, não é? – Lara fitava os pedaços de cera sobre a bancada de pedra. – Isso? Milorde adora fazer de minhas mãos castiçais para sentar-se com os amigos e conversar. Por isso ele está sempre na mesa do canto, onde tem pouca luz.

A submissa ria vendo o queixo da mulher à sua frente cair, os olhos arregalando-se e encontrando os dela. Divertia-se sempre que esses detalhes espantavam algum baunilha despreparado. – Muito prazer, pode me chamar de siamesa... – Piscava um olho e voltava-se para o espelho do banheiro, olhando-se demoradamente... os dedos tocando o rosto como se buscando sentir novamente um tapa que seu Dono lhe dispensara mais cedo. Desenhava os toques dele fechando os olhos por um breve instante. Respirava fundo, sentindo a pele do corpo reclamar um pouco dos maus-tratos à cruz enquanto a outra mão deslizava da cintura até as nádegas. Sentia-as bem quentes, ainda, sabia que estavam vermelhas... soltava um suspiro ao deslizar os dedos pela coxa grossa, aproximando-se de onde mais desejava que seu Dono a tocasse. – Sabe... – siamesa tinha um tom sereno, na voz – A dor em si importa tão pouco ante seu significado... você não conhece e por isso se assusta. Mas é uma dádiva. É esse direito de merecer o toque, que você vai conquistando. – O olhar ganhava um brilho que parecia avisar a Lara que não havia por que ter pena dela. – É uma prova de amor que poucos sabem e podem dar, realmente...

Pensativa, a mulher respondia um pouco sem graça. – Muito prazer... me chamo Lara e lamento se... – Ela sentia-se acanhada, com tudo o que pensara, vendo nos olhos daquela mulher tamanha devoção àqueles sentimentos. Mas era interrompida pela porta que se abria de modo apressado, quase atingindo as duas, na afobação da submissa mais jovem que entrava no banheiro e olhava para siamesa.

- Lorde pediu pra vir te ajudar... quer ter certeza que você saia daqui apresentável. – Era uma menina que parecia ter lá seus 20 e poucos anos, de cabelos loiros, não muito compridos, olhos de um mel quase dourado e pele um pouco queimada de sol. Os lábios eram delicados e tinha todo um jeito frágil, que se mesclava a uma preocupação que parecia beirar paranóia. Devia ter muito medo de não agradar quem quer que fosse, não apenas seu Dono, pensou Lara.

- Tá bom. – siamesa falava à menina de forma áspera, bem diferente do tom de voz anterior à interrupção – Mas poderia ter mais cuidado? Entrando desse jeito, quase acertou a gente, persa, credo... – O olhar dela mudava um bocado... um brilho impositivo, parecia corresponder à submissão no olhar da outra, que agora não ousava fitar a companheira e buscava o chão, acuada. – É isso que nunca vai te tirar dessa coleira de treinamento, sabia? Você é muito estabanada, se apressa demais pra fazer qualquer coisa que lhe ordenam e se esquece de fazer bem e fazer direito. – Lara espantava-se com a pessoa que agora falava, no banheiro. Com certeza não condizia com aquela mulher algemada à cruz. Com o rosto limpo, a postura ereta, o olhar severo e a voz tão forte, dirigia-se à outra como se prestes a castigá-la.

- Mas... eu... você sabe que eu só quero agradar o Mestre... – persa deixava as mãos às costas, de cabeça baixa, parecendo uma criança levando bronca dos pais. – Desculpa... – Respirava fundo, como se prestes a chorar, mas então voltava a olhar para siamesa e sorria. – Você estava linda, lá no meio, sabia? Milorde deve ter ficado tão orgulhoso de você... – Aproximava-se, procurando algo no estojo de maquiagem aberto sobre a pia. Lara notava que ela também tinha pedaços de cera derretida endurecidos na pele das mãos e dos braços.

- Sinceramente...– siamesa suspirava e apontava para a mulher que já estava no banheiro com ela, antes de persa entrar – Você sabe que deve se apresentar a todos, não? Milorde não vai passar por mal-educado só porque você não dá o valor que deveria à coleira. – Respirava fundo, aborrecida, e olhava para a mulher. – Lara, essa é persa... terá que perdoá-la pelos seus modos, mas até há três meses atrás, ela sabia menos ainda do que você, sobre tudo isso. A falta de educação, no entanto, essa eu já acredito que seja de berço. Está sendo adestrada para merecer uma dessas. – Tocava orgulhosamente as iniciais do Dono, à coleira, enquanto persa repetia o gesto, tocando sua própria coleira, de couro negro, bem menos delicada que a outra, com grossas argolas de metal nas laterais e na frente. Tinha um ar triste ao rosto, olhando o adorno da outra submissa, sentindo uma pontada de inveja.

- Muito prazer... me chamo persa, sou uma vadia submissa e meu corpo pertence a meu Mestre, Lorde Avatar. – Falava aquilo com um jeito mecânico, era uma apresentação decorada... as pontas dos dedos ainda deslizavam pela coleira, sentindo-a ao pescoço. O olhar vago mostrando que aquela menina não estava ali, que a mente se perdia em uma tristeza profunda.

- Como você pode ver, persa ainda tem muito a trilhar... – siamesa aproximava-se lentamente da irmã de coleira, agora sorrindo, indo tocar-lhe o rosto com um olhar muito similar ao que seu Dono tinha, quando começou a acariciar seus cabelos, aos pés da cruz. – Ela ainda se deixa afetar demais, falta-lhe confiança. – A voz se tornava até mesmo mais acolhedora. – Ela ainda não compreende que não importam os erros, mas o esforço em superá-los. Milorde a pôs sob minha tutela, por isso eu preciso ser firme com ela. Com o tempo, se tornará digna das iniciais, algo que me custou muitas lágrimas, mas valeu a pena cada uma delas. – Deslizava as unhas em direção à nuca da outra, sentindo-lhe e causando calafrios visíveis, fechando os dedos e agarrando persa pelos cabelos... seu olhar agora era como um reflexo do Dono, o sorriso trazia um tom de sadismo – Ela é tão vadia que fará tudo o que eu pedir, esperando que fale bem dela para nosso Senhor. Quer poder se dizer digna dele, a todo custo. – Olhava de soslaio para Lara, puxando os cabelos da menina, com força, a cabeça pendendo para trás. – Chuparia você, uma completa estranha, se eu ordenasse nesse exato momento. Na verdade, adoraria a ordem... ela é uma puta, se excita em ser usada. Não é, bichano?

- Eu faria como ordenasse, minha tutora. – A jovem sentia o couro cabeludo reclamando os dedos da irmã e fechava os olhos, respirando fundo... odiava o quanto siamesa e seu Dono estavam sempre certos sobre ela. Odiava sentir seu corpo reagir tão bem àqueles maus-tratos. Sentia-se entregue àquela cuja coleira invejava tanto. Por vezes, imaginava como seria se fosse ela a principal. Olhava naqueles olhos que agora lhe pareciam tão ameaçadores quanto os de seu Lorde. Aqueles olhos que adoravam provocá-la, cada vez que seu Dono a amarrava tão perto da cama, amordaçando-a e obrigando-a a assisti-lo fazer sexo com sua primeira escrava. Mas tudo aquilo a excitava tanto... era uma dança perversa, a três, que cada vez mais a envolvia.

Se Lara se mostrava atônita antes de tudo aquilo, agora assemelhava-se a um rato acuado, frente àquelas duas felinas. Seus apelidos não eram à toa, aliás. Via-as e cada movimento delas era realmente como os de um gato. Seu Dono as adestrara a tal ponto... não. Ela se recusava a acreditar que aquilo fosse capaz de chegar tão longe, a ponto de moldar-lhes os modos. Era apenas mais uma brincadeira, mais um fetiche dele e delas, se satisfazendo ali. Tinha certeza disso. Mas se assustava com tudo. Especialmente com a proposta de siamesa. Havia algo extremamente sensual, na troca de olhares daquelas duas... olhares que por vezes alcançavam os dela e lhe causavam arrepios. Algo completamente diferente do homem de olhos azuis, no entanto. Lara já havia tido suas experiências com outras mulheres, mas apenas beijos, praticamente uma brincadeira juvenil. Não se via aceitando aquela proposta tão repentina. Precisava admitir, no entanto, que toda aquela dança que presenciava era instigante.

- Eu agradeço a oferta, mas... – Segurava o batente da porta, como se querendo atravessar a parede. As duas submissas agora olhavam-na em meio a risinhos incontidos e sorrisos lascivos. A tutora trazia os lábios da aprendiz ao pescoço e suspirava, com um beijo intenso, de devoção. Havia algo de tão estranho, nas duas. Ficava claro o ciúmes que siamesa sentia por seu Dono adestrar mais uma escrava e a inveja de persa pela coleira da outra... mas ali, havia uma proximidade intensa. Encorajavam-se a enfrentar os caprichos daquele homem que as submetia às suas vontades. A beleza daquela entrega tornando-se um pouco mais clara, para a advogada curiosa. O ar naquele banheiro tornando-se impregnado por uma tensão sexual quase palpável. – Eu não gosto de... é a primeira vez que venho a uma festa dessas. Desculpem, tá? Foi um imenso prazer, conhecê-las. – Falava nervosa, uma mão alcançando a maçaneta, ao ver que as duas ainda a olhavam, enquanto iniciavam uma dança, entre si... persa ajoelhando-se à frente de siamesa, sorrindo, enquanto esta apenas lhe dirigia um olhar de desafio. – Só porque não imagina o que está perdendo, Lara. E o prazer foi... e será todo nosso.

A porta se fechava e ela sentia como se tivesse prendido a respiração, pelos últimos minutos... o rosto corado, a testa suada, os olhos ainda se esforçando em assimilar tudo o que presenciara ali dentro. Mas a pele estava arrepiada... tivera que lutar contra parte de si, para alcançar a maçaneta. O susto com tudo havia apenas sido maior que aquela estranha excitação. Se recompunha, percebendo que ir ao banheiro acabou lhe ajudando muito pouco, a se acalmar. Caminhava pelo salão tentando novamente deixar seu olhar resoluto, confiante, como estava quando tudo o que via ali parecia apenas diversão. Caminhava em direção à mesa onde ainda estavam Marcos e Paula, quando um garçom mais distraído cruzou-lhe o caminho e Lara tropeçou nos saltos, tombando à frente, desajeitada, buscando qualquer apoio, com as mãos. Sentia alguém pegar-lhe a cintura, pelo lado, e ela segurava naqueles pulsos com firmeza, para retomar o equilíbrio. Voltava-se para o homem, que agora a soltava e buscava-lhe o olhar. Mergulhou naqueles azuis intensos, fixos nela... mal percebia o sorriso do homem, que certamente lhe gelaria ainda mais a espinha.

- Tome cuidado, sim? Os garçons tendem a se distrair demais, quando alguém está à cruz. Nem parece que a cada três semanas isso tudo aqui se repete. – O homem tinha uma voz aveludada, grave, e olhava-a de frente, rindo. Era um tanto mais alto que ela, e só agora Lara se lembrava de soltar-lhe os pulsos. Ele sorria com o canto dos lábios, apenas. – Você é de fora do Rio? Marcos e Paula possuem muitos amigos de São Paulo, se não me engano. Já conhecia a noite sadomasô carioca? – Ela espantava-se que justo ele fosse o primeiro ali a não notar de cara que ela não sabia nada do assunto, mas recompunha-se melhor e agora sorria, como se confrontando toda a ameaça que sentira naquele homem, até o momento. – Ah, sim, me chamam Mestre V. É um prazer conhecer mais que seus olhos. –Sorrindo, assertivo, estendia uma mão para a mulher.

Via-o melhor, agora que se sentia mais segura. Parecia mais jovem, de perto, e seus olhos daquele azul tão forte decoravam um rosto esguio, uma pele branca, mas com jeito de que andava vendo algum sol, de vez em quando. Os cabelos eram negros, curtos, cheios, caindo-lhe à altura das orelhas. Os lábios eram discretos, com sorrisos que só transpareciam no resto da expressão. Já notara as mãos firmes, quando impedia que ela caísse, e seus dedos lembravam-se dos pulsos dele, enquanto ela encontrava a mão estendida dele, deixando-se tocá-la e ganhar um beijo galante. Os olhos, no entanto, observaram-na durante todo o trajeto, ganhando um tom mais ameaçador quando a via por cima da própria mão. O toque daqueles lábios era gentil. Deslizavam pelas costas da mão, fazendo-se sentir em um movimento demorado.

- Lara... e o prazer é todo meu. – Ela olhava na direção de Marcos e Paula e via uma mulher ajoelhada ao lado deles, sobre uma almofada. Conversava com os dois, animadamente, enquanto pousava sobre a mesa um copo de uísque com bastante gelo, em seguida puxando uma nova cadeira mais para perto, ajeitando-a e passando as mãos sobre ela, como se pudesse tornar a madeira mais confortável.

- Ah, aquela é minha menina, samantha. Vamos, vou apresentá-las. – Um sorriso ainda mais largo traía-o, mas ele não parecia se importar. Apenas percebia que a mulher se acanhava um pouco. – Ou se importa que sentemos junto a vocês? – Fitava-a por meros dois segundos, antes de começar a caminhar em direção à mesa. O olhar vitorioso, o sorriso ainda lá. – Tenho certeza de que não. Vamos...

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