terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Capítulo 4

- E então, minha amiga, qual o saldo da noite? Valeu a pena deixar de lado um pouco do marasmo e vir conosco?

A pergunta parecia vir tirá-la de um transe no qual perdera quase meia hora, dentro do carro de Marcos, cortando a madrugada entre os arranha-céus do centro da cidade. Um lugar tão deserto, àquela hora, onde muitos provavelmente não suspeitariam o quanto poderia se passar. Claro, durante a semana inúmeros bordéis e casas de strip estariam sempre de portas abertas, para receber os empresários e trabalhadores que àquela hora estivessem escapando tardiamente do trabalho árduo. Muitos desses provavelmente já sob o manto de terem avisado suas esposas que teriam coisas a adiantar, se não quisessem perder o final de semana. Mas era domingo e Lara acreditava que mesmo aquelas mulheres trabalhadoras estariam longe dali.

- Marcos, eu só posso agradecer a vocês dois, por hoje. Se nada mais, a noite certamente foi... – Procurava qualquer palavra melhor, na certeza de que V aprovaria a primeira que lhe viera à mente, com um sorriso de escárnio, naqueles lábios perigosos. Então desistia de procurar. – educativa. Não dá pra imaginar como essas coisas rolam até você ver assim de perto, realmente. Difere demais do que eu imaginava, sabe? Vocês me falavam disso, muito de vez em quando, e eu ficava pensando “que coisa de doido!”. Mas até vocês dois são fichinha, né? Perto daquele pessoal lá dentro.

Paula começava a rir, dentro do carro, olhando-a por cima do ombro. – Fichinha é ótima, minha amiga! Mas acho que somos, sim. Essa noite foi intensa, você até deu sorte. – Dava uma risadinha breve. – Quer dizer... se for sorte o interesse do Victor pela sua “baunilhisse”. Ele quase não costuma fazer nada, nas festas, é mais quando está empolgado com alguma prática nova, ou então quando a dona da festa decide pentelhá-lo tanto que ele não pode dizer não. Mas, como muitos Dominadores, ele também curte quando olhares curiosos se arregalam na direção da pobre samantha. E você, Larinha, era decerto o olhar mais curioso, ali dentro.

Os três dentro do carro começavam a rir, com aquele último comentário, e a convidada respirava fundo, observando o próprio reflexo no vidro da janela, contra a paisagem tão escura. Fitava os próprios olhos por um longo tempo, agora, pensativa. Por mais que se esforçasse em rejeitar a idéia de que poderia vir a gostar de tudo o que vira, achava difícil não pensar que poderia ser pelo menos interessante, como toda experiência nova. Percebia que o quanto antes rejeitava tudo aquilo apenas reforçava o frio que sentira à barriga, enquanto presenciava aquelas cenas. “Ao menos não é ‘coisa de maluco’ nem violência”, ela pensava, até como um meio de se consolar.

Marcos seguia rapidamente, o carro mergulhando na imensa pista da Avenida das Américas, quando chegavam à Barra da Tijuca e aquelas muitas luzes de certa forma ajudavam Lara a sentir-se um pouco mais confortável, perto de casa. Paula, no banco da frente, deixara-se levar pelo sono de uma noite agitada e estava de olhos fechados, a cabeça pendendo um pouco na direção do vidro da janela. Entretanto, a advogada no banco de trás não conseguia sentir um pingo de sono, pensativa ainda. – Marcos... não sei o quão mal pode soar, perguntar essas coisas. Mas você e Paula já? Tipo, aquilo tudo lá na festa foi tão pesado...

- Se a gente já fez algo tão hard, daquele tipo? – Ele antecipava, até porque sentia o constrangimento da amiga. – Não exatamente. Mas cada um se deixa levar aos níveis que lhe agrade, afinal. Tem gente tão masoquista que não se satisfaz com menos do que aquilo ali. E quem somos, eu ou você, para pensar mal disso? – Ele ria baixinho, seus olhos encontrando os dela pelo retrovisor. – Aquela menina, por exemplo, a samantha. A gente conversou com ela, depois da cena. Diria que ela seja uma pessoa fraca, ou carente? Aliás, faz o tipo que provavelmente os amigos e colegas de trabalho se espantariam se soubessem o que rola em noites como essa.

- Ela até falou que quando começou com Victor, tinha um namorado que não sabia nada dessas coisas, né? – Lara comentava. – Isso eu acho realmente estranho, aliás. Sei lá, ela esteve tanto tempo com alguém que ela já sabia que não a satisfazia. De certa forma eu sinto até pena de quem quer que fosse, porque provavelmente nunca nem soube. Sei lá, Marcos, isso eu não conseguiria.

- Vai ver você mencionou a palavra certa... satisfazia. Quem pode dizer que ela estava com um rapaz que realmente não a satisfazia? Emocionalmente, talvez ele a satisfizesse bem mais que Lorde V, àquela época. Os dois começaram apenas como Dominador/submissa, então vai ver ela precisava de algum laço emocional mais forte, porque isso lhe faria falta. No entanto, Victor acabou se tornando bem mais para ela, você deve ter percebido. E ele vai relutar em admitir, mas deu a ela um papel bem maior que o de escrava, também. Por trás daquela fachada, eu acredito que ele realmente a ame. Ou não teria interferido no que a Dama Negra fazia com a menina, até para depois ganhar um motivo a mais para puni-la.

Aquilo de certa forma quis embrulhar o estômago de Lara. Ela também notara o olhar carinhoso daquele homem por sua submissa, e isso a fazia imaginar que qualquer interesse que pensasse ter visto nos olhos de Victor quando fitara os seus era meramente carnal, possivelmente apenas o interesse por uma “virgem” no assunto. Alguém que ele pegaria de surpresa em cada esquina do percurso. Mas então, lembrava-se do olhar de desafio que samantha dirigira a ela mesma, ao final daquela cena. Aquela menina tinha ciúmes de seu Dono?

- Muita gente prefere não envolver o emocional com essas coisas, Larinha. – Paula, ainda de olhos fechados e com a voz suave pelo cansaço, interrompia seus pensamentos. – E não dá para culpá-los, porque fica realmente complicado conciliar as duas coisas, certas horas. Tem quem afirme que amar uma submissa torna impossível puni-la como se “deveria”, certas horas.

- Mas ora bolas, não é ele quem decide como é que se deve ou não lidar com a necessidade de uma punição? Por que pelo que entendi, é essa a regra, não? Então quem é que poderia julgá-lo por isso? – Lara tentava não ficar confusa.

- Hahahahahahahahahaha! Você tem toda razão, amiga, tecnicamente ninguém poderia se sentir no direito de julgá-lo, dessa forma. – A amiga retrucava. – Mas a gente sabe que tem gente que adora meter o dedinho no que não lhe interessa, onde quer que seja. Por quê seria diferente, com esse pessoal? Tem gente que adora, que acha que ser melhor é ficar criticando a prática dos outros. Então pegam qualquer caso fora do comum e ficam levantando comparações, adoram uma “cartilha” pra ficar fazendo imposições à diversão dos outros, sabe como é? Agora, cá entre nós... algo do que você presenciou essa noite pode ser considerado “pegar leve”? Porque acho que os três aqui já concordamos que Lorde V e samantha têm mais que uma coleira entre eles.

Lara sentia um arrepio subir a espinha, como se ao mesmo se lembrasse dos olhares de Victor e samantha, sobre ela. Se aquilo fosse algo leve, ela realmente não queria nem tentar imaginar o que poderia ser pesado.

- Mas veja bem, são maneiras diferentes de ver a coisa, não existe realmente como gravar nada na pedra, com relação a isso. Cada um faz e lida com essas práticas como melhor lhe convier e agradar. Os únicos limites convencionados entre os praticantes do mundo inteiro são a sanidade, a segurança e a consensualidade. Desrespeitadas essas “fronteiras”, é crime, é violência. – Marcos tomava um tom um pouco mais sério. – O que quer que você faça, no meio, se torna responsável por observar essas convenções, com atenção. São as margens dessa liberdade de sermos nós mesmos, de explorar nossos anjos e demônios. Eu acho que o preconceito baunilha muitas vezes surge porque é fácil associar o BDSM à promiscuidade. E também não dá pra contestar que existem muitos do meio que se tornaram praticantes exatamente por essa “promessa”. – Havia um tom de desaprovação, em como ele falava disso. – Tem quem ache que estar em uma dessas festas é desculpa pra agir feito bicho no cio. E o pior certamente são dominadores que acham que ser competente é estapear qualquer rabo de saia supostamente submisso que se esfregue neles.

Paula ria um bocado, desse comentário. – Ah, sim, esses são tão ridículos que dá até pena, amiga. É cada papelão que não dá nem pra contar. Mas, convenhamos, todo grupo social tem dos seus patetas, porque seria diferente no mundo BDSM? Que é engraçado, é! Se você for a mais algumas festas, vai começar a reconhecer o tipo, é bem fácil. Cantam mil vantagens de escravas perfeitas das quais ninguém ouviu falar, são normalmente os que mais metem o dedinho deles na senzala alheia e ficam deixando qualquer par de pernas se esfregar aos seus pés. Pra você, que ficou brincando comigo e com Marcos que estava indo à festa por “mero estudo antropológico”, é um prato cheio.

O carro entrava em meio aos grandes condomínios da Barra, perdendo-se por entradas gradeadas com guaritas fumê, quase invisíveis em meio à madrugada, e Marcos e Paula despediam-se de Lara à frente de seu bloco, antes de mergulharem na rampa para debaixo do bloco dos dois, apenas poucos metros depois.

No elevador, fitando o próprio olhar no espelho, a advogada buscava no fundo de si aquela mesma força que lhe desafiara durante a festa, mais cedo. Lembrava-se de persa e siamesa, no banheiro daquele lugar. Pensava em Lorde Victor e sua escrava, em tudo o que havia presenciado àquela cruz incomum, à baixa luz do local. E sorria, para si mesma. Tinha achado que seria uma noite tranqüila e chata, em casa, antes do convite do casal de amigos.

8 comentários:

Anônimo disse...

O retorno para o lar após uma noite tão intensa, pegou Lara desprevinida em seus pensamentos.
Um mundo novo se abriu diante dos olhos da inocente advogada, que percebeu que há muito mais na comunidade BDSM, que ela ousava imaginar. Os olhares tão fortes que pudera presenciar, assombrarão os pensamentos dela e a pequena semente da curiosidade fora plantada em sua alma.
Ah, meu caro e amado Mestre Addam! O quarto capítulo é apenas a calmaria para a verdadeira tempestade que está para chegar na alma de Lara.
Delicioso este capítulo que nos trouxe um pouco mais de explicações.
Quando terei o quinto capítulo em minhas mãos?
Beijos mordiscados,
Queen Sidhe!

Lee Holloway disse...

Olha só!
Capítulo novo! Oba!
Essa história de Lara está cada vez mais interessante...
Beijos!
Lee

iaiá disse...

vim parar aqui meio sem querer, querendo...
mas a gente sempre sabe onde vai, não?
assim como vc me dá a impressão que já sabe toda sua história, que se desenvolve muito bem.
parabéns escreve muito bem!
fiquei grudada até o fim.
espero o próximo capítulo.

San Lee disse...

Moço, que que é isso???
Que texto!!!
Muito bom!

iaiá disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
kittycat disse...

Vim lá do palácio, e notei que o capítulo 4 data de alguns meses.Mal posso esperar pelo resto.Terá?

Lee Holloway disse...

Lara já não deve estar aguentando mais de tanta ansiedade pra conhecer o lado bom da "coisa".

Cadê o capítulo 5?

Sir Stephen e SUA maria{SS} disse...

gostei e vou voltar!
beijos

maria{SS}